A viagem de circum-navegação do planeta que não deixou o Atlântico
Donald Crowhurst foi um empreendedor, inventor e uma personalidade dotada de carisma. Predicados que, durante meses, valeram a este velejador de fim de semana, nutrir uma história que enganou uma nação. Nos idos de 1969, Inglaterra vibrava com o relato do homem que se prestava a completar uma viagem recorde de circum-navegação do globo por via marítima. Na realidade, Crowhurst nunca deixou as águas do Atlântico. Uma história de fracasso que alimenta o cinema, entre outras artes, há 50 anos.
Uma foto captada em 2011 numa praia das Ilhas Caimão, arquipélago no Mar das Caraíbas, devolve-nos os destroços de um veleiro construído nos idos de 1968. Uma imagem de abandono, entre céu, mar e vegetação tropical, de um trimarã que desde há 50 anos inspira a literatura, teatro, séries documentais, letras de músicas. Teignmouth Electron, aquele que foi apresentado como um veleiro à frente do seu tempo, é desde 1970, também mote para produções cinematográficas. Uma viagem na Sétima Arte que inclui a película soviética de 1986, Race of the Century, ou mais recentemente dois filmes de 2017, assinados pelos britânicos Colin Firth (The Mercy) e Simon Rumley (Crowhurst).
Não é, contudo, a tecnologia inovadora para a época que faz de Teignmouth Electron objeto apetecível para tão profícua abordagem de diferentes artes. Os diários de bordo de Donald Crowhurst, o inglês, que engendrou o trimarã, dão o sumo a uma história que há cinco décadas fascina o mundo. Entre outubro de 1968 e julho de 1969, Crowhurst esteve prestes a findar aquela que seria a viagem de circum-navegação global por via marítima mais rápida de sempre. A 10 de julho de 1969, quando o navio britânico Picardy abordou o veleiro que flutuava abandonado nas águas do Atlântico, resgatava o casco solitário do Teignmouth Electron. Inglaterra aguardava com euforia o regresso de Crowhurst. Contudo, o herói da nação, prestes a vencer a primeira edição da regata milionária Sunday Times Golden Globe Race, não voltaria a pisar a pátria. O homem que teria cumprido dezenas de milhares de milhas marítimas sulcando as ondas dos oceanos Atlântico, Antártico, Índico e Pacífico, há meses que se limitava a navegar entre as Américas e África.
Uma história de embuste coletivo que nasceu de um espírito empreendedor e de uma personalidade carismática. Donald Crowhurst, nascido em 1932 na Índia, pai de quatro crianças, casado com Clare, tinha de formação engenharia eletrónica. Donald era, também, inventor e dono de uma pequena empresa, a Electron Utilizations. No portefólio, o também velejador de fim de semana, trazia a invenção de um dispositivo que recorria a sinais de rádio para facilitar a navegação. Crowhurst queria mais, numa época em que Inglaterra clamava o feito de Sir Francis Chichester. Em maio de 1967, o velejador solitário findava 266 dias de mar em torno do globo. Só por uma vez tocara terra nesse seu périplo.
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Aos 36 anos, sem barco, sem meios financeiros para investir na jornada e com pouca experiência de mar, Donald anuncia a sua corrida às cinco mil libras vencedoras da Sunday Times Golden Globe Race. Inglaterra embarcaria nos meses subsequentes numa história mirabolante.
Será Stanley Best, um investidor, a suportar financeiramente a empresa de Crowhurst. Isto numa altura em que alguns, entre os nove competidores na corrida contra o tempo, já sulcavam o Atlântico. A organização estipulara como prazos para a partida os dias 1 de junho e 31 de outubro de 1968. A 23 de setembro desse ano, Donald faz a bênção ao seu Teignmouth Electron. Só a 31 de outubro, depois de ultrapassados problemas técnicos, se faz ao mar. Entretanto, em terra, a máquina de marketing da expedição Teignmouth Electron seduz dezenas de milhares de britânicos.
Cedo, ao sabor do vento, sobre as ondas, o velejador amador percebe que o mar é o seu maior inimigo. Crowhurst, sem experiência de navegação, pensa abandonar a viagem ainda na Madeira. As dívidas contraídas e a vergonha pública impedem-no e avança rumo ao precipício.
À longínqua Inglaterra chegam notícias via rádio dos progressos do velejador britânico. Primeiro o oceano Antártico, depois o Índico. Por alturas de dezembro, Donald avança a bom ritmo, de acordo com os relatos que chegam à terra natal. Na realidade, o velejador navega o Atlântico Sul, ciente de que a circum-navegação será uma miragem. O "herói" inglês forja um segundo diário de bordo com as coordenadas mitificadas da sua aventura. Decide assumir o embuste, embora já não queira ser aclamado vencedor da regata.
O destino não joga a favor do velejador, face aos três concorrentes ainda em prova. Bernard Moitessier desiste da competição, Tetley naufraga ao largo dos Açores e Robin Knox-Johnson, completa a circum-navegação em 312 dias. Crowhurst que supostamente já atravessara o Pacífico prepara-se para um tempo recorde. A terra, contudo, deixam de chegar notícias. O silêncio impôs-se definitivamente.
Data de 1 de julho de 1969 o tratado que Donald Crowhurst escreve a bordo, mais tarde encontrado pela equipa do Picardy. Vinte e cinco mil palavras com o delírio de um homem há oito meses afastado do mundo. Findo o relato, Crowhurst ter-se-á suicidado por afogamento nas águas do Atlântico médio. À família do velejador que circum-navegou o mundo apenas no seu diário de bordo, chegam cinco mil libras doadas por Robin Knox-Johnston. Sem glória, o trimarã Teignmouth Electron termina os seus dias no ativo como barco de cruzeiro nas Caimão.