Jacinda, canábis e eutanásia. Os três referendos da Nova Zelândia
No início do ano, o Partido Trabalhista estava em segundo nas intenções de voto. Mas a resposta de Jacinda Ardern à pandemia elevou a popularidade da primeira-ministra aos píncaros, ao ponto de sonhar com a maioria absoluta. Esse resultado histórico pode ser impedido pelos partidos de direita, que registaram subidas nas sondagens.

Selfies na Universidade Victoria, em Wellington. Os media relatam que Jacinda Ardern foi recebida como uma estrela rock.
© Marty MELVILLE / AFP
Comícios sem distanciamento social nem máscaras, campanha de rua com selfies e abraços. Uma realidade não à distância de meses mas de milhares de quilómetros. Em Auckland, no último dia de campanha eleitoral, um jornalista contabilizou mais de 80 selfies em que participou a primeira-ministra e favorita a novo mandato de três anos.
Num país com cinco milhões de habitantes e quatro dezenas de casos ativos de covid-19, todos importados e em isolamento em centros para o efeito, a gestão da pandemia acabou por ser um trunfo para Jacinda Ardern e o seu Partido Trabalhista. Segundo as sondagens, a líder de 40 anos pode alcançar uma maioria absoluta e governar sozinha, o que seria inédito desde a reforma eleitoral de 1996.
Marcadas para 19 de setembro e adiadas para este sábado devido ao aparecimento de casos de coronavírus, as eleições parlamentares coincidem com dois referendos: o da legalização do uso da canábis para efeitos recreativos, e o da "escolha pelo fim da vida".
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O primeiro permitiria às pessoas com mais de 20 anos comprar até 14 gramas por dia em estabelecimentos autorizados e cultivar duas plantas (ou quatro por agregado familiar), juntando-se a países como o Canadá ou o Uruguai, e a alguns estados dos EUA. O segundo legaliza a eutanásia e o suicídio assistido, aplicando-se em casos de pessoas que sofrem de doenças terminais, suscetíveis de morrer dentro de seis meses, e padecem de um sofrimento considerado "insuportável". A Nova Zelândia seguiria os passos de Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo, do Canadá e da Colômbia.
As sondagens indicam que há uma alta probabilidade de um referendo ser aprovado e outro reprovado. Numa sondagem (Newshub/Reid Research) realizada a horas das eleições, 56,1% dos inquiridos disseram concordar com a proposta sobre a morte assistida, 33,4% discordar e 9,5% mostram-se indecisos. Já a legalização da canábis não deverá ver fumo branco. Com 5,7% de indecisos, 55,6% dos entrevistados rejeitam a proposta e 38,3% aprovam.
O tema da canábis foi o mais partidarizado. Apesar de ter admitido que já fumou aquela substância quando era mais nova, Jacinda Ardern não quis tomar partido nem indicou o sentido de voto, ao contrário da sua principal opositora, Judith Collins. A líder do Partido Nacional, de centro-direita, tentou ganhar votos neste tema, ao tentar mostrar-se resoluta em oposição a uma primeira-ministra incapaz de se comprometer.
Apesar de ter admitido que já fumou canábis, Jacinda Ardern não quis tomar partido nem indicou o sentido de voto
Collins, de 61 anos, também não perdeu a oportunidade de se mostrar a rezar numa igreja, num descarado piscar de olhos ao eleitorado conservador e religioso que se revê na campanha antilegalização Nope to Dope (Não à droga). Chegada à chefia do Partido Nacional há três meses, a ex-advogada, antiga ministra em várias pastas e que gostaria de ser um dia chamada de Margaret Thatcher da Nova Zelândia, promete cortes drásticos nos impostos para reanimar a economia.

A líder do Partido Nacional e da oposição Judith Collins.
© EPA/Ben McKay
A atitude combativa de Collins, apesar dos ganhos na mais recente sondagem Newshub/Reid Research, não chega. Na última oportunidade para convencer indecisos, num debate com Jacinda Ardern, na quinta-feira, ouviu a chefe do governo acusá-la de "desonestidade" e de "desespero" por estar a incutir medo na população por causa de uma taxa sobre as fortunas proposta pelos Verdes.
O Partido Nacional recolhe agora 31,1% das intenções de voto contra 45,8% dos trabalhistas (menos 4,3 pontos em relação à sondagem anterior). A queda do partido de Jacinda equivale ainda à subida de dois outros partidos de direita, o nacionalista New Zealand First (parte da coligação de governo) do vice-primeiro-ministro Winston Peters, que parecia condenado ao desaparecimento, e do ACT, de David Seymour. Mas quando esta última sondagem foi publicada já tinham votado quase metade dos eleitores registados, os quais escolhem 72 deputados através de listas de candidatos e 48 através de listas partidárias.
A popularidade do Partido Nacional estava em alta no início do ano, quando os eleitores não acompanhavam a popularidade de Jacinda Ardern no estrangeiro. A promessa por cumprir de construir dezenas de milhares de casas a preços acessíveis - faltam cem mil fogos no país - e a economia em geral atiraram o Partido Trabalhista para segundo. Tudo mudou com a pandemia.
No final de março, quando apenas cerca de cem kiwis (como os neozelandeses se autodenominam) tinham covid-19, Ardern e os responsáveis de saúde colocaram a Nova Zelândia num estrito confinamento com o lema "Com força e rapidamente". A chefe do executivo fechou as fronteiras e traçou como meta eliminar o vírus por completo nas ilhas que formam o país, em vez de apenas tentar controlar a sua propagação.
O objetivo foi alcançado durante mais de três meses sem transmissão comunitária, até que em agosto um surto em Auckland levou a um confinamento local e ao adiamento das eleições. Hoje os únicos novos casos registam-se entre os viajantes, que são colocados em quarentena.
O regresso da Jacindamania
A forma como lidou com a pandemia levou a que fosse considerada a antítese de Donald Trump. A Jacindamania voltou, com a primeira-ministra a ser recebida por multidões que não dispensam fotografias, abraços e mensagens de encorajamento. Em troca, a primeira-ministra promete investir em infraestruturas e em cursos gratuitos de formação profissional. E leva a todo o lado uma mensagem positiva, deixando para trás o tema da pandemia.
"Há motivos para estarmos otimistas", disse Ardern a uma multidão de estudantes universitários na capital, Wellington. "Há motivos para termos esperança. Há razões, espero, para que todos vocês olhem para a Nova Zelândia e se sintam orgulhosos. Mas que também se sintam dispostos a continuar a pressionar-nos para fazermos mais, para sermos mais."

Cenário impensável em quase todo o resto do mundo: Jacinda discursa perante plateia sem máscaras nem distanciamento social, em Wellington.
© Marty MELVILLE / AFP
Aconteça o que acontecer, a líder da oposição prometeu três coisas no dia das eleições: ir ao cabeleireiro de manhã, festejar os resultados à noite e não se demitir. À pergunta de um jornalista sobre se iria estar a lamentar-se no final da noite, respondeu: "Celebro sempre na noite das eleições. Penso que é maravilhoso viver numa democracia liberal, poder fazer isso, e espero ter muito que celebrar, obrigado", disse Judith Collins.
Outros protagonistas
A líder da oposição, com três meses no cargo, a colíder do partido ecologista e o deputado único do partido libertário são os outros atores do sufrágio, no qual é esperada uma derrota do partido nacionalista NZ First do atual vice-PM Winston Peters.
Judith Collins
Partido Nacional
Como ministra teve a seu cargo a Justiça, Serviços Prisionais, Polícia, Assuntos Étnicos, Energia e Impostos. Não lhe falta experiência nem capacidade política, num estilo que contrasta com a empatia da primeira-ministra, a qual jogou de forma implícita o trunfo da gestão da pandemia.
Marama Davidson
Verdes
Esta maori, defensora dos direitos das mulheres e militante antirracismo, é colíder do partido ecologista em parelha com James Shaw. Se o Partido Trabalhista falhar a maioria absoluta, terá nos Verdes o apoio parlamentar, como gozou nesta legislatura, ou mesmo um parceiro de coligação.
David Seymour
ACT
Se as sondagens se confirmarem, o líder deste partido libertário será um dos vencedores do sufrágio. Desde 2011 que a formação, antes conhecida como Associação de Consumidores e Contribuintes, tem apenas um deputado. O número de representantes poderá multiplicar-se por dez.
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