E o prémio vai para a China
No grande jogo da geopolítica, a taça de 2020 deve ser atribuída à China. Foi um ano muito difícil para todos os países. Porém, aqui chegados, noto que o único que sai verdadeiramente reforçado, passadas todas as provas, é a China. A Austrália e a Nova Zelândia jogaram bem, mas estão noutro campeonato. Não têm, nem de longe, o peso político do campeão.
O ano começara mal, com a cidade de Wuhan - 11 milhões de habitantes - no centro das preocupações. Mas uma resposta forte, extremadamente nacionalista, e uma população formatada pela versão moderna do confucionismo ancestral - manda quem está no poder, obedece quem anda pelas ruas da vida - transformou o controlo do vírus numa vitória política para a elite dirigente. Acima de todos, para o presidente Xi Jinping.
E o ano terminou com mais um golo, marcado nos minutos finais, com a conclusão das negociações sobre os investimentos entre a China e a União Europeia. Este acordo, importante para ambas as partes, estava a ser discutido há sete anos. O arrastar da coisa deveu-se à obstrução chinesa, que queria ter as mãos livres para investir na Europa, enquanto criava obstáculos aos empreendimentos europeus na China. Finalmente, e antes da tomada de posse de Joe Biden, Beijing achou que era importante fechar o pacto com os europeus, afastando-os assim de uma posição mais combativa que a nova administração americana possa vir a adotar. Para os europeus, o acordo abre as portas a investimentos nos setores de finança, saúde, energia e das tecnologias da informação. Se for respeitado, representará um avanço no reequilíbrio das relações económicas entre os dois lados. O tratado procura ainda defender os direitos de propriedade intelectual e promover certas normas laborais internacionais, mas sem convicção. As autoridades chinesas não deixam espaço de manobra nesta área, nomeadamente na abolição do trabalho forçado de prisioneiros ou de minorias étnicas.
Subscreva as newsletters Diário de Notícias e receba as informações em primeira mão.
O nosso problema com a China é acima de tudo político. Diz respeito aos direitos humanos e aos valores democráticos. E aí não vejo uma concordância no horizonte, nem de perto nem de longe. Os sucessos obtidos em 2020 e a acentuação do nacionalismo e do orgulho chinês, teclas fáceis de pressionar perante a confusão que se vive na nossa parte do mundo, reforçaram a legitimação e o poder de Xi Jinping. Essa legitimidade assenta em dois grandes pilares - a existência de oportunidades económicas para a maioria dos cidadãos e a manutenção da ordem interna, incluindo a disciplina cívica. Ainda esta semana, quando falei, como regularmente o faço, com os meus correspondentes na China, ouvi sublinhar essas duas dimensões. Em resposta às minhas referências aos direitos humanos e à democracia, uma jovem chinesa lembrou-me que a sua geração, mesmo os que obtiveram diplomas académicos no estrangeiro e observaram como funcionam as liberdades, não faz ondas. Os jovens com estudos superiores preferem aproveitar as ofertas de emprego e de prosperidade, que continuam a ser imensas, numa China em crescimento acelerado e com um mercado interno vastíssimo. Num aparte, foi-me dito que o número de candidaturas a bolsas de estudo nos EUA e na Europa, para o próximo ano letivo, cresceu bastante. A ambição é obter diplomas em instituições com prestígio e voltar, depois, ao mercado de oportunidades que é a China. Também aqui o regime de Xi Jinping conseguiu incutir duas ideias. Uma, que a prazo não haverá futuro para os diplomados chineses que se queiram instalar no Ocidente, por causa da crescente desconfiança que aí diz existir em relação a quem possa ser visto como um agente sub-reptício do governo de Beijing. Outra, que o futuro pertence à China, que será nos próximos anos, talvez já a partir de 2028, a maior economia mundial.
Entramos em 2021 com uma China que se sente mais possante e arrojada, invencível mesmo. Mas, a história há muito nos ensinou que todos os gigantes têm pés de barro. A China de Xi Jinping, se não introduzir uma certa dose de prudência nas suas relações internacionais, incluindo moderação na desmesurada Nova Rota da Seda e a aceitação de valores humanos fundamentais, poderá acabar por tropeçar na sua própria arrogância e gigantismo.
Conselheiro em segurança internacional.
Ex-representante especial da ONU