A América do pós-guerra e os seus sonhos destroçados
Silva Melo encena "O Jardim Zoológico de Vidro", de Tennessee Williams. Sim, de vidro e não de cristal. Porque aqui não há ricos.
Uma rapariga, Laura, em idade casadoira mas sem pretendentes. Tem uma ligeira deficiência numa perna, é tímida e em vez de procurar um namorado prefere ficar em casa a limpar e a cuidar das suas miniaturas de animais. Ainda assim, ela sonha com o dia em que o príncipe encantado possa entrar na sua pobre casa. Assim como a mãe, Amanda, sonha com a sua juventude gloriosa, quando tinha dinheiro e vestidos e ainda não tinha sido abandonada pelo marido. Assim como o irmão, Tom, que trabalha para sustentar a família, sonha com o dia em que vai sair dali e ser livre. Assim como o amigo do irmão, Jim - que, por momentos, pode ser o príncipe esperado - sonha com uma vida como deve ser, um emprego próspero, uma mulher, os filhos a brincar no terraço.
Os Artistas Unidos estreiam O Jardim Zoológico de Vidro, de Tennessee Williams, e a primeira coisa em que reparamos é que o título usa o vidro e o não o cristal a que estávamos habituados. "A tradução que o Afonso Botelho fez em setentas e que foi estreada no Nacional com a Fernanda Alves diz cristal. E eu percebo porquê: jardim zoológico não tem o mesmo charme que tem menagerie [o título original é The Glass Menagerie], portanto ele usa o cristal para dar alguma sofisticação. Mas eu acho que cristal é para gente muito mais rica", explica o encenador Jorge Silva Melo. E aqui não há ricos.
A peça de Tennessee Williams estreou-se em 1944 em Chicago e chegou pouco depois à Broadway, onde foi um sucesso estrondoso. "Uma das surpresas deste Jardim Zoológico de Vidro, quando se estreou, foi falar de gente que não sabia o que era o cristal. As peças todas da Broadway, do Noël Coward e outros, falavam sempre do cristal. Da alta sociedade. E aqui temos gente pobre. Com a mania das grandezas mas com muito poucos meios. Esta gente perdida, sem saída, não entrava nos palcos, na altura."
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Tennessee Williams tinha escrito isto como uma novela para ser filmada, mas Hollywood não quis. Era gente demasiado pobre e sem interesse para entrar nos filmes. "Os únicos pobres que apareciam nos filmes era os boxeurs e os gangsters", comenta Silva Melo. Então, Williams transforma-a em peça de teatro, mas deixa-a ficar com toda a carpintaria do cinema. Os flashbacks, a voz off, a presença de um narrador, os saltos no tempo (um black out durante o jantar permite-nos saltar para o final da refeição), as músicas que ele indica para acompanhar as cenas (e aquela ideia muito cinematográfica de haver um cabaret ao lado da cena), os intertítulos - "Ele vai roubar ao cinema as técnicas para fazer uma revitalização do teatro. Em termos narrativos, esta peça é muito diferente de tudo o que se fazia. E, como é um sucesso enorme, fez mais de duas mil representações na estreia, vai influenciar o teatro a partir daí."
Muitos veem esta peça como autobiográfica. Jorge Silva Melo vê Williams em Tom, aquele jovem que, tal como o dramaturgo, sai de casa e vai para Nova Iorque, deixando para trás a mãe e a irmã deficiente. "É uma peça de remorso, de culpa, mas também é um adeus, uma despedida", diz o encenador. Ele vai começar uma vida nova. E talvez na peça pareça que os sonhos das personagens não se concretizam e que são todos vencidos pela realidade sufocante. Mas a verdade é que Tom tem a coragem de arriscar e partir à aventura.
Em janeiro de 2017, os Artistas Unidos encerram o ciclo dedicado a Tennessee Williams com A Noite da Iguana, no Teatro São Luiz, em Lisboa, com Rúben Gomes e Maria João Luís.