Lisboa vista da outra margem: salas viradas para o bairro ou "vista maravilhosa"?
O lado sul do Tejo oferece imagens da capital impossíveis de conseguir por outras bandas. Os construtores nem sempre as privilegiam, mas isso está a mudar. As vistas são cada vez mais valorizadas, sobretudo por quem lá mora. Depois dos elogios às "vistas" do Bairro Amarelo pela presidente da Câmara de Almada, Inês de Medeiros, o DN republica esta reportagem de 21 de novembro de 2015.
Entrar em Lisboa pelo rio Tejo é paixão garantida: pela paisagem, pela arquitetura, pela luz, por tudo. E há quem tenha o privilégio de ter essa visão da janela, da varanda ou do terraço de casa, às vezes com intenção, outras nem por isso; às vezes pagando mais, outras nem por isso. Quatrocentas mil pessoas vivem nos concelhos do arco ribeirinho sul: Barreiro, Seixal e Almada, um quarto nas freguesias junto ao rio, algumas com vistas privilegiadas para a capital.
Lídia Raimundo é uma dessas privilegiadas. Habita o último andar de um prédio na ponta do Monte da Caparica (Almada), do lado oposto ao Cristo Rei, naquele que é conhecido como bairro do Pica Pau Amarelo, cuja construção começou em 1978. Num qualquer condomínio, teria a sala virada para o Tejo com grandes janelas, de onde veria Lisboa desde o edifício da Fundação Champalimaud ao Terreiro do Paço. Mas quem desenhou a habitação social parece nem ter reparado na paisagem.
A casa está virada para o interior do bairro, com os quartos do lado do rio e a luz a entrar por uma pequena janela ao canto. A sorte é que mora no 7.º andar a uns lances de escada das águas furtadas. Mais parecem a continuação da habitação, a porta de entrada está sempre aberta. Aqui estende a roupa e tem uma vista mais desafogada, um imenso horizonte azul, há 23 anos.
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"Gostei muito da casa, era grande, quatro assoalhadas, e eu vivia na rua. Gostei da vista, mas tive medo das alturas porque os meus filhos eram pequenos", conta Lídia, 53 anos, uma angolana que chegou a Portugal em 1981. Tem seis filhos e sete netos. "Fui mãe aos 16, o mais velho tem 37 anos e o mais novo 25." É assistente operacional no Hospital Garcia de Orta.
Imigrou de Luanda para se encontrar com a mãe, que tinha deixado Angola em 1975. "Não vim logo porque nos desencontrámos. Vim ter com ela ao campo do Inatel, na Costa da Caparica. Aquilo foi abaixo e vivi com os meus filhos um ano e meio na rua. Atribuíram-se primeiro uma casa no bairro Cor de Rosa [Pragal] e depois esta. Vivo aqui desde 1993, com esta paisagem linda. E, entretanto, o bairro ficou mais calmo", explica.
Mas Lídia Raimundo reconhece que só apreciou verdadeiramente as vistas mais tarde, já com os filhos crescidos. "Vejo tudo. O fogo de artifício do fim de ano do Terreiro do Paço, do Seixal, de todo o lado. Vejo a Ponte 25 de Abril à noite, toda iluminada, é muito bonito." Vive atualmente com dois filhos e dois netos. Paga cerca de 20 euros de renda.
Trafaria tem falta de habitação

José Banheiro.
Alguns quilómetros à frente, na Trafaria junto ao rio, fica o apartamento de José Banheiro, 74 anos, reformado, que aqui vive com a mulher. Os três filhos já têm as suas famílias. Um prédio de seis andares no meio da vila e que se destaca pela altura. É construção ilegal, de 1972. Conta José: "Por causa das baterias antiaéreas [instaladas na década de 1940 entre a Trafaria e a Costa da Caparica] - faziam fogo de instrução na barra de São João -, não permitiam prédios com mais de três andares e este foi construído à revelia." A porta de entrada também está de costas viradas para o Tejo. Era conhecido como o edifício dos CTT, mas os Correios deixaram de ter estação na freguesia.
Os pais, que moravam perto do novo edifício, viram ali uma oportunidade de o filho voltar à terra que conheceu aos 2 anos, quando a família se mudou de Lisboa. O pai fazia pesca desportiva, o barco que tinha em Belém foi destruído com um temporal e decidiu mudar-se para a Trafaria para praticar o seu hobby. José casou-se e foi residir na Costa da Caparica por haver falta de casas na terra onde nasceu. "O problema da Trafaria é que não há casas para as pessoas se fixarem. O que existe está degradado, é uma zona muito envelhecida. A atual junta está com uma certa abertura para a recuperação de casas abandonadas, vamos ver."
José Banheiro gostou logo da casa e da vista, mas a principal razão da compra foi o preço acessível - um T2 por 160 contos (cerca de 800 euros) há 40 anos - e a facilidade de transportes para Lisboa, cidade que adora. "Gosto muito de passear na Baixa, sobretudo à noite." Durante o dia, admira a capital das janelas do apartamento ou sobe ao terraço se quiser uma vista de 360 graus. Mas é sempre para a Torre de Belém, o Padrão dos Descobrimentos e os ministérios do Terreiro do Paço que se fixam os olhos. "À noite, Lisboa toda iluminada é linda." E com o vento a favor consegue-se ouvir os espetáculos realizados em Belém ou em Algés.
O barco que liga a Trafaria e Porto Brandão a Belém é que já teve horários mais alargados e maior frequência. "Estamos mais mal servidos do que há 30 anos. O último barco de Lisboa era às 00.45, agora é às 22.00 e, aos domingos, às 21.00." A vida social e cultural também já foi melhor. "As pessoas vinham de Lisboa para assistir aos espetáculos e, depois, regressavam no primeiro barco da manhã. E quem morava na Caparica era aqui que fazia a sua vida social. Os silos estragaram a qualidade de vida da Trafaria. Tinha uma extensão de praia que ia até à Cova do Vapor, isto enchia-se de gente no verão. Tornou-se demasiado isolada."
Mesmo assim, José Banheiro não a trocaria por outro local. Banheiro de nome, mas controlador de qualidade de profissão. "Quando dizia o meu nome, pensavam que estava a falar do meu trabalho. Tenho até uma história engraçada. No verão, juntávamo-nos seis ou sete rapazes na Caparica e, num ano, um colega, o Alexandre Batista, que foi jogador do Sporting, perguntou: "Em que praia és banheiro se estás sempre aqui?""
Tejo de Lisboa ou do Seixal

Ana Baião.
Ana Baião, 28 anos, trocou Lisboa pelo Seixal há quatro anos. Tinha casa nas Olaias e viveu muitos anos na Penha de França, logo, o rio é uma referência que tem de manter por perto. "Via tudo, agora já não troco o Seixal por nada, nem que me oferecessem um andar nas Amoreiras ou na Expo. Tenho a vista do lado do rio, se fizer um grande zoom consigo ver o que está a acontecer no Terreiro do Paço. Gosto de ver a Ponte 25 de Abril, a Vasco da Gama." É a vista que tem da Quinta da Trindade, um condomínio mesmo em frente à baia do Seixal. Ao lado está o River Terraces, um prédio com piscina, ainda em construção. Ana diz estar tudo vendido, sobretudo a franceses. Sabe do que fala porque é uma consultora imobiliária desempregada.
Zona sossegada, sem dificuldade de estacionamento e um calçadão para percorrer. O segundo andar de Ana, que aqui mora com a filha de 5 anos, só tem árvores e terreno até chegar ao rio. Uma grande valia e que a levou a comprar a casa ainda em projeto, mas que agora não é a principal razão que a fixa no concelho. "Tem um ambiente completamente diferente de Lisboa. As pessoas são disponíveis, amigas, mesmo sem nos conhecerem. Cresci na Penha de França e não sentia tanto isso. Aqui, vamos resolver um problema à junta de freguesia, à Segurança Social, às Finanças, e fica resolvido. O presidente da junta passa por nós e cumprimenta-nos. O que me prende é a camaradagem."
Ela e os pais compraram há seis anos um T2 que agora custaria 165 mil euros. O projeto Arco Ribeirinho Sul previa a construção de uma ponte entre Lisboa e o Barreiro, que seria depois ligada ao Seixal, e um hospital, um bom investimento para a filha e os pais quando se reformassem. Não aconteceu e, apesar disso, Ana não está arrependida. Vive na freguesia desde 2011 e logo ultrapassou o medo de viver só com a filha num sítio desconhecido. Tem um andar numa zona privilegiada e que não conseguiria pelo mesmo preço em Lisboa. E com uma excelente vizinhança.
Sempre gostou das alturas

Maria Emília Amaral.
A ex-professora do ensino básico Maria Emília Amaral, 70 anos, sempre gostou de alturas, não fosse ela filha de uma terra junto à serra da Estrela, mais propriamente de Meruge, em Oliveira do Hospital. A quinta onde morava ficava numa encosta e ela muitas horas passou a admirar a população que se concentrava no centro da aldeia.
Fez o magistério em Coimbra, em 1974, e trabalhou na secretaria da universidade até tirar o 7.º ano dos liceus, antes de exercer a profissão numa aldeia, da qual depressa se fartou. Tinha amigas professoras no Barreiro que a incentivaram a concorrer para o concelho. Aqui conheceu o marido, casou-se e foi morar para um rés-do-chão. "Ele era da Mealhada e comprou a casa em solteiro. Nunca gostei."
Um dia zangou-se com o companheiro e saiu de casa com o filho, então com 5 anos. Foi viver com a prima, Maria Rodrigues Batista, de 73 anos, com quem partilha atualmente muitos dias da sua reforma. "Ia na rua com o meu filho e o meu marido veio ao nosso encontro. Disse que tinha comprado uma casa para nós já que eu não gostava da que tínhamos, fiquei toda contente." O andar em questão era o segundo. "Disse-lhe que não gostava do 2.º e perguntei ao construtor se o 6.º estava livre. Disse que sim e fomos ver. Gostei logo da vista. Lembro-me como se fosse hoje." Compraram o andar, um T2 por 8500 contos (42 500 euros), há 23 anos.
"Esta vista para mim é tudo, não gosto de estar fechada. Vejo a margem sul até ao Montijo, os aviões a aterrar na base, os catamarãs, a Ponte Vasco da Gama, a 25 de Abril." E depois toda a margem de Lisboa. Vista de 180 graus das janelas do apartamento e que se alargam aos 360, do terraço do prédio.
São as vistas o que mais aprecia em morar Barreiro, onde vive há mais de três décadas. Confessa que espera passar os últimos dias em Coimbra, onde tem casa e vive o filho, que também lá estudou.
Publicado originalmente a 21 de novembro de 2015