Citação a Bolsonaro no caso da execução de Marielle abre crise no governo
Vice-presidente Hamilton Mourão diz que "o caso não derruba mas perturba o governo". Governador do Rio de Janeiro, ao ser acusado de ser responsável pela fuga de informação, desmente o presidente. Sergio Moro é nomeado pelo chefe de Estado para investigar o sucedido.
A citação a Jair Bolsonaro no depoimento do porteiro do condomínio Vivendas da Barra, no Rio de Janeiro, onde moram tanto o presidente da República como o suposto autor dos disparos que mataram a vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes em março do ano passado, gerou mais uma crise no governo do Brasil. Como num dominó, reagiram o próprio Bolsonaro, um dos seus filhos, o vice-presidente Hamilton Mourão e o ministro da Justiça, Sergio Moro, entre outros protagonistas.
Tudo começou numa reportagem da TV Globo, que noticiou o caso ao início da madrugada em Portugal. Segundo a reportagem, Élcio Queiroz, preso há já seis meses acusado de guiar o carro de onde saíram os disparos, foi ao Vivendas da Barra horas antes do crime para, de acordo com o porteiro do condomínio, visitar a casa 58, cujo proprietário é Jair Bolsonaro.
O porteiro ligou então para a casa 58 a anunciar a visita e de lá, uma voz semelhante "à do seu Jair", conforme afirma o funcionário do condomínio em depoimento, autorizou Élcio a entrar. O visitante acabaria, no entanto, por se desviar e entrar na casa 66 onde mora Ronnie Lessa, alegado autor dos disparos. Avisado do facto pelo porteiro, "o seu Jair" teria dito que estava ciente disso.
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A Globo teve acesso aos registos em papel e em áudio da portaria do condomínio e ao depoimento do porteiro à polícia. Mas apurou também que, a essa hora, o então deputado Bolsonaro, dizem os registos do Congresso Nacional, não estava no Rio mas sim no plenário da Câmara dos Deputados, em Brasília.
O que levanta duas questões: a primeira é quem então da casa 58 autorizou a entrada de Queiroz no condomínio, se Bolsonaro estava em Brasília. E a segunda é se o telemóvel do então deputado era munido de um aparelho que direciona as chamadas feitas do interfone do Vivendas da Barra para o seu número pessoal.
Entretanto, só a simples menção ao nome de Bolsonaro já leva o processo para o Supremo Tribunal Federal, que analisa todos os casos de autoridades com foro privilegiado, no caso, o presidente da República.
Da Arábia Saudita, onde está em visita oficial, Bolsonaro reagiu energicamente à reportagem. Começou por culpar o governador do Rio de Janeiro - e seu aliado até há poucos meses - pela fuga de informação do depoimento do porteiro num caso em segredo de justiça. Wilson Witzel, mais tarde, repudiou a acusação: "É leviana, lamento que ele, que talvez não esteja no seu estado normal, tenha levantado acusações contra a minha atividade, jamais vazei informações, quer como magistrado quer como governador."
Depois, ameaçou a TV Globo, autora da reportagem, de não ver renovada a sua concessão de operador televisivo e acusou-a de "canalhice" e "patifaria". A emissora disse que o que o presidente chama de "canalhice" e "patifaria" é "jornalismo de qualidade".
E, finalmente, exigiu ao seu ministro da Justiça, Sergio Moro, que volte a recolher depoimento do porteiro do seu condomínio. Moro acatou e pediu ao procurador-geral da República, o recém-nomeado Augusto Aras, que instaure um inquérito em parceria com a polícia federal para investigar a prática de tentativa de obstrução à Justiça, falso testemunho ou acusação caluniosa na citação pelo porteiro do condomínio do nome de Bolsonaro. Aras concordou.
Ivan Valente, líder parlamentar do PSOL, o partido a que Marielle Franco pertencia, chamou de "intimidação ao porteiro" o pedido de Moro e de "destrambelhada e com um medo e irritação fora dos parâmetros" a reação de Bolsonaro.
Mas foi do próprio vice-presidente da República, Hamilton Mourão, a mais contundente das reações à crise: "Não dá para derrubar o governo, mas que perturba o bom andamento do serviço, como se diz na linguagem militar, perturba."
O crime, cometido a 14 de março, decorreu no centro do Rio. Marielle Franco seguia num carro, com a assessora Fernanda Chaves e o motorista Anderson Gomes, quando foram abordados por uma outra viatura de onde saíram 13 tiros. Marielle e Anderson morreram, Fernanda sobreviveu com ferimentos leves.