Os 90 anos de Maria de Lourdes Modesto: a estrela de todos nós
Maria de Lourdes Modesto nasceu em Beja em 1 de junho de 1930 e é de longe a personalidade mais importante da cozinha portuguesa. Autora, mentora e figura de inelutável vocação cénica, que sempre dá prazer ouvir. Os seus livros estão em todas os lares e cozinhas do país e o seu modo único de partilhar a sua paixão deixa marcas profundas.

Maria de Lourdes Modesto fotografada em sua casa em março de 2019.
© Paulo Spranger/Global Imagens
Os mais velhos lembram-se vagamente, os mais novos não têm sequer ideia dos dois botões de rodar que havia na parte de trás dos televisores - obviamente a preto e branco - e a que invariavelmente tínhamos de recorrer para ver televisão. Um deles era o botão de sincronismo, que fixava a imagem na base de tempo certa e impedia que viajasse para cima e para baixo sem parar; o outro era o da obliquidade, que repunha as proporções certas no ecrã e fazia desaparecer a sensação de estar perante retratos cubistas, alinhando tudo.
Quando a RTP começou a emitir, em 1957, era com esses equipamentos que sentados e quedos os portugueses assistiam aos diferentes programas, na sua maioria em direto e sem possibilidade de falhas, pois não havia como repetir. Ainda com estatuto de pioneira, a nossa televisão foi em 1958 fazer uma reportagem ao Liceu Francês sobre uma peça de Molière que estava em cena e na qual participava uma professora de trabalhos manuais daquela escola.
Começa assim a vida pública da jovem Maria de Lourdes Modesto, perante quem sucumbiu toda a equipa da RTP e a quem logo ali foi lançado o convite para fazer um programa cultural na televisão. Foi rápida a decidir, recusou o tal programa, mas aceitou fazer um outro, orientado para as mulheres. Quis o destino que o tema do primeiro fosse arranjos de flores e que em jeito de atrevimento Maria de Lourdes optasse por mostrar como cozinhar e comer alcachofras.
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Estamos no tempo dos diretos e a neófita estrela conquistou o país inteiro com a naturalidade de gestos e discurso que ainda hoje tão bem a caracteriza. Quando levou uma pétala à boca e comentou que era ótimo, Portugal inteiro apaixonou-se pela professora de trabalhos manuais do liceu francês que estava como peixe na água a fazer e a explicar ao mesmo tempo. Não houve dúvidas de que ia passar a cozinhar na televisão. A partir daí, toda a gente nas suas casas ajustava os tais botões da televisão para que a imagem estivesse ótima quando a elegante e sedutora Maria de Lourdes Modesto estava a cozinhar.
Foram 12 anos de carinho, crescimento e popularidade que juntamente com o TV Rural de Sousa Veloso - iniciado em 1960 - foram porventura os dois programas com maior audiência de todos os tempos. Maria de Lourdes tinha o talento único do direto, nunca se atrapalhando nem interrompendo quando sentia que do outro lado estava alguém a ouvi-la. Tem inúmeros episódios hilariantes que de vez em quando partilha, e teve a cozinhar a seu lado como convidados algumas das nossas figuras míticas, caso por exemplo do chef João Ribeiro, do então Hotel Aviz.

Maria de Lourdes Modesto fotografada em sua casa em março de 2019.
© Paulo Spranger/Global Imagens
Conta-se que num dos programas o grande cozinheiro revela que utiliza muitas vezes ovos das galinhas do palácio de São Bento e Maria de Lourdes não se fez esperar para se meter com o mestre por ele usar os ovos do presidente do conselho, a que respondeu mas olhe que são muito fresquinhos. Este tipo de intimidade imediata é um exclusivo dos grandes comunicadores e por isso o programa atingiu a popularidade inédita e irrepetível dentre vários outros que passaram pela ribalta televisiva. A gravação de programas para posterior difusão permitiu mais tarde melhor programação mas rapidamente ditou o afastamento da nossa estrela cozinheira, por tudo o que tinha de impessoal e por não se entender com os tempos e modos da nova forma de fazer televisão.
Investigação, reflexão e produção literária
A evolução foi natural, perante o imenso repositório de receitas, produtos e costumes que por devoção e dedicação chegou às mãos de Maria de Lourdes Modesto. Havia muito a fazer em matéria de inventariação, classificação e arquivo de toda a informação e essa foi uma atividade constante na sua vida. Com o propósito fundamental de assegurar subsistência económica, abraçou dois grandes projetos de vida.
Por um lado, assumiu integralmente ao longo de 31 anos uma relação profissional exclusiva com a Fima, de que a ponta mais visível foi a margarina Vaqueiro. São históricos os livrinhos de receitas por si desenvolvidos que eram entregues em troca de uns cinco invólucros Vaqueiro. As receitas tinham um nível médio/elevado de sofisticação e isso caiu muito bem num público essencialmente feminino que queria cozinhar melhor e de forma mais internacional. Nas receitas utilizava-se margarina e óleo Vaqueiro como ingredientes básicos, e muito do património de imagem da marca ainda vem desses tempos. Nutria-se, até, alguma aversão à manteiga e ao azeite pela supostamente maior salubridade dos produtos Vaqueiro.
O poder de influência da grande Maria de Lourdes Modesto era e será sempre o maior dentre todos os que entretanto meteram mãos à obra gravando programas de TV e publicando revistas, artigos e livros. Nenhum deles superou jamais o que a nossa pioneira lançou. O já desaparecido Chefe Silva lançou a sua Tele-Culinária, de retumbante êxito e com uma equipa grande a trabalhar com ele, da qual todas as receitas eram testadas antes de ser publicadas. Surgiu também Filipa Vacondeus que também reuniu grandes fãs à sua volta, mas estes e diversos outros seguiram um filão que foi desbravado por Maria de Lourdes.
O outro braço profissional que desenvolveu no pós-TV foi o literário. Entrou para a editora Verbo pela mão de Fernando Guedes para fazer um trabalho de grande fôlego, a Grande Enciclopédia da Cozinha. Para a nossa diva, foi ouro sobre azul, pois transformou em tarefas válidas os seus esforços e vontade de estudar a fundo e sistematizar todo um edifício de conhecimento acerca de receituário e cozinhas regionais.
Escrita fluida e estruturação quase matemática foram as grandes armas com que se abalançou às colossais tarefas de que jamais alguém se tinha sequer aproximado. É fundador o seu Cozinha Tradicional Portuguesa, que fez no seio da Verbo sob direção artística de Sebastião Rodrigues e fotografia de Augusto Cabrita, a que se juntou o gigante António Homem Cardoso. Foi na altura uma espécie de nirvana o muito elevado nível a que se chegou. Mas é dos meus grandes momentos enquanto jornalista aquele em que estando com Maria de Lourdes em sua casa a vejo dirigir-se a uma estante e a tirar o seu Receitas Escolhidas de Maria de Lourdes Modesto, enquanto diz este é um livro muito bem feitinho. Profusamente ilustrado em termos de técnicas culinárias e até formas de amanhar os diferentes peixes e preparar carnes por exemplo para assados, torna tudo incrivelmente acessível. Ainda não me cansei de o explorar, confesso e sempre que procuro algum assunto ou prato encontro mais dois ou três com pelo menos o mesmo interesse.
A paixão pelo conhecimento e pelo inteiramente novo sobrepôs-se sempre ao plano estritamente material, qualquer autor em qualquer país do mundo teria acumulado fortuna com metade apenas do que Maria de Lourdes Modesto produziu e ajudou a produzir. No meio de tantos de quem cuidou, esqueceu-se de cuidar de si própria. Um aspeto devocional para que é preciso também olhar para entender como a jovem professora do liceu francês mantém intacta a sua juventude e candura. Não trocava a vida que teve por nenhuma outra.

Livro de receitas de Maria de Lourdes Modesto.
© Paulo Spranger/Global Imagens
Vanguardista e motivadora
Agora a completar 90 anos de vida e quase 70 de carreira, Maria de Lourdes é bem-vinda em qualquer parte onde apareça. Há um carinho nutrido por alguém que fez da vida sacerdócio a favor de todos. Milhares de cozinheiros sentiram as suas vocações por contacto, leitura e prática com Maria de Lourdes. Continua a visitar restaurantes e a sentar-se à mesa com o prazer da festa com que sempre se sentou. E sempre alguém ou vários se levantam para a cumprimentar, com carinho.
Toda a nossa bateria de chefs de primeira - serão hoje mais de cem - tem sempre lugar e tempo para receber e instalar a grande mentora, como se de alguém de família se tratasse. As suas críticas são sempre construtivas e não poupa nos parabéns quando gosta e quando lhe é explicado o que tem no prato.
O aspecto cultural e de intenção é ponto importante nas suas avaliações e o seu próprio arsenal técnico é considerável. No entanto, jamais lhe ouviram sugerir a um cozinheiro como ele devia fazer, em vez disso pergunta. Tem veneração pelo ofício em si e por isso respeita. Maria da Graça Castelo Lopes, Maria do Carmo Amaral Neto e diversas outras personalidades ligadas a Maria de Lourdes desenvolveram de alguma forma uma atividade lectiva e de treino profissional. O passo lógico desde há muito teria sido a criação de uma academia de cozinha, o êxito seria, ainda hoje, retumbante. É difícil entender tal não ter chegado a acontecer, dada a empatia imediatamente gerada numa simples conversa, quanto mais na cozinha, mexendo, conversando e aprendendo.
Maria de Lourdes é eterna. Obrigado, Maria de Lourdes Modesto.
*Fernando Melo é crítico de vinhos e comida na revista Evasões. Engenheiro físico pelo IST, dedica-se há 30 anos ao estudo das raízes e dos patrimónios gastronómicos do país, percorrendo ao pormenor o território, nas suas mesas, vinhas e adegas. Dá formação em Enogastronomia nas escolas de Hotelaria nacionais.