"Ou se amava ou se odiava." Era uma vez um país chamado Ary
Carlos do Carmo, Fernando Tordo e Simone de Oliveira recordam o poeta Ary dos Santos, que hoje faria 80 anos
Era o delegado sindical dos miúdos e seu eterno companheiro de brincadeiras. Fazia com que o pai lhes aumentasse a semanada e enrolava-se na carpete ao lado deles. O pai dos miúdos era Carlos do Carmo, e ele, o dito delegado sindical, era o poeta Ary dos Santos (1937-1984), de vulto grande e voz tonitruante, que hoje faria 80 anos.
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Os dois conheceram-se pouco antes de o fadista levar Estrela da Tarde, escrito por Ary, ao Festival da Eurovisão, em 1976. Lembra-se de quando o conheceu? "Oh, se me lembro. Ele transparecia naquele volume de voz um homem agressivo, e na realidade era um homem de uma generosidade sem limites; poucas pessoas sabiam isso." Teve gestos de generosidade "extraordinários" que, conta Carlos do Carmo, não são sequer conhecidos por quem deles beneficiou.
É pela sua voz que conhecemos poemas de Ary como Os Putos, Lisboa Menina e Moça, ou aqueles que compõem todo o histórico álbum Um homem na cidade (1977). O fadista recorda um criativo genial, que a escreveu um fado em 45 minutos, de uma penada. E recorda a conceção do histórico álbum, com Ary e a sua "tendência para resvalar para a canção revolucionária. E eu dizia-lhe assim: 'Oh Zé Carlos, nós estamos a fazer um disco de fado. Ou é um disco intemporal ou é uma coisa datada e estás a matar o disco à nascença.' Ele compreendeu, e alegrou-se com a receção do disco."
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Ele, autor de poemas como "As Portas que Abril Abriu": Era uma vez um país / onde entre o mar e a guerra / vivia o mais infeliz / dos povos à beira-terra. Ele, filiado no Partido Comunista que, diz Carlos do Carmo quando lhe perguntamos como reagiu ao escândalo causado por versos da Desfolhada em 1969 - quem faz um filho / fá-lo por gosto - ,"era vaidosíssimo", e fazia gala em ser autor desse motivo de escândalo.
Foi aí que Simone de Oliveira o conheceu, quando cantou essa música no Festival da Canção. Tornar-se-iam grandes amigos. Ele chamava-lhe "Tejinho" e, às vezes, uma ou outra palavra não tão bonita. Mas então dizia: "Ai irmã, desculpa, que eu a ti não posso dizer palavrões."

Em 1969 com Simone de Oliveira com Nuno Nazareth Fernandes
"Aquela figura ou se amava ou se odiava. Era um homem difícil. Podia ser a criatura mais desagradável do mundo e podia ser a criatura mais carinhosa do mundo. Era um homem de extremos. Homem contundente, de génio, cheio de talento, talento que transbordava. Transbordava tanto que a meio de uma garrafa de gin ou de uísque era genial. Houve momentos geniais que não esqueço. Sete Letras foi escrito a olhar para mim: saiu inteiro, assim de uma rajada", recorda Simone.
Talvez Fernando Tordo conheça o seu método de trabalho como ninguém. Foi o grande companheiro de canções de Ary dos Santos. "Tourada, Estrela da Tarde, Cavalo à solta, escolha uma qualquer, tanto faz, todas elas foram feitas com o texto posteriormente à música". Essa era composta por Tordo. Depois, sentavam-se frente e a frente, ele com o violão e Ary com as palavras. "Era uma espécie de um segredo. Funcionava como uma alma gémea."

Em 1973 com Fernando Tordo, de regresso do Festival da Eurovisão em 1973
© Arquivo Global Imagens
Viveu no mesmo prédio desse homem que diz ser" autor de alguns dos grandes poemas da história da poesia portuguesa". Fizeram canções antes e depois do 25 de abril, canções que estarão na boca de muitos - e nem todos saberão quem cantam. "Havia uma vida nova, um país novo, mas havia uma cultura da escrita e da música que tinha que se manter e evoluir. Nós contribuímos para isso da maneira que melhor podemos fazer."
Quando Ary morreu, favia tempo que não estavam juntos. Ligou-lhe três dias antes. O poeta é um mentiroso. Ele disse que tinha estado mal, mas já estava bem.
Carlos do Carmo recorda esse dia, em janeiro de 1984. "Lembro-me, como se fosse hoje, de um jovem bombeiro entrar e dizer: 'Eu queria tanto conhecer este homem, eu adorava as coisas que este homem fazia, e sou eu que o vou levar, morto?' O bombeiro completamente estarrecido."